REPÚBLICAS FEDERAIS: QUOSQUE TANDEM ...?
por KÁTIA CAMPOS
A leitura do manifesto
publicado pela Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto
deixa um gosto amargo e desalento quanto à qualidade acadêmica dos
redatores, pois a impressão que se tem de sua leitura, é que foi
redigido por e para adolescentes arrogantes e rebeldes. O manifesto
não passa de uma bravata, uma tentativa ingênua de reduzir uma
grave questão de interesse e direito público, a uma mera birra
entre estudantes e moradores. Ou pior, à realização ou não de
Carnaval (que aliás, foi maravilhosamente bem, sem a intervenção
destrutiva de cidadãos moradores temporários
e alheios à prevalência da cultura local). Em matéria de falta de
conhecimento e grande capacidade de torcer a realidade, perplexos
ficamos nós.
Vamos analisar, então,
os equívocos e inconsistências que permeiam este documento. O
primeiro deles diz respeito ao desconhecimento evidente da
complexidade do significado de autonomia e, por extensão, do
conceito de autonomia universitária. Segundo RANIERI (1994)[1] a
autonomia, no direito público, pode ser conceituada como poder
funcional derivado,
circunscrito ao peculiar interesse da entidade que o detém e
limitado
pelo ordenamento que lhe deu causa, sem o qual ou fora do qual não
existiria. Trocando em miúdos, a
autonomia não é soberania absoluta, como querem muitos, mas
poder derivado.
Vamos explicar melhor:
quando este poder é atribuído a uma instituição pública, isto
não lhe garante liberdade absoluta, uma vez que a autonomia é
restrita ao interesse específico da entidade. Portanto, a autonomia
é sempre relativa. Suas
atividades não são executadas em benefício exclusivo do seu
interesse, mas principalmente em função dos interesses da sociedade
que a institui e financia.
Entendam bem, o interesse
e o direito de se manifestar sobre os rumos e a atuação
administrativa (ou qualquer outra) é de todos nós, o povo
brasileiro, inclusive daqueles que jamais chegarão ou chegaram às
portas de uma escola, seja de que nível for. O povo ouropretano está
plenamente qualificado para protestar, fiscalizar e denunciar, sempre
que a lei o permita. Há conflitos paralelos, não menos relevantes,
acontecendo simultaneamente, que o manifesto deliberadamente
apresenta como integrantes da questão, quando não são. A polêmica
desaparece quando se identifica o foco real de toda esta questão, o
desvio ou mau uso das moradias federais e sua intolerável relação
custo-benefício. Senão vejamos:
Do ponto de vista ou
“análise” do manifesto, a “polêmica” se trata de um mero e
rasteiro confronto polarizado entre população e estudantes,
colocando a categoria estudantes como vítimas ou bodes expiatórios
dos rancores ouropretanos. Não há nenhuma categoria genérica
“estudantes da UFOP”, como alvo constante de atitudes hostis de
ouropretanos. Existem moradores de patrimônio público federal que
abusam ilegalmente de um privilégio para auferir lucro. Existe um
sistema anacrônico e obsoleto. Os conflitos porventura existentes
com moradores de repúblicas particulares não se enquadram nem seria
adequado discuti-los sobre este manifesto em particular.O povo de
Ouro Preto existe e há mais de 300 anos.
Como era de se esperar, o
artigo 207 volta a ser citado inapropriadamente e de maneira nada
sutil, como para nos dizer que talvez estejamos ameaçando “arranhar”
a autonomia universitária. A Associação não parece se incomodar
em perverter o conceito específico de autonomia universitária,
invocado para justificar critérios flagrantemente contrários à
promoção de maior igualdade social, favorecendo alunos não
carentes com o direito de moradia gratuita. A manutenção estrutural
das casas federais não é da atribuição de cidadãos, é obrigação
e dever legal da UFOP.
Afinal, em que consiste a
famosa autonomia universitária? Em primeiro lugar, é aplicável a
relatividade intrínseca do conceito de autonomia explicitado acima,
ressaltando que a Universidade não tem um fim em si mesma, mas serve
aos interesses da sociedade que a institui e mantém. Os recursos
públicos aplicados na moradia estudantil devem ser forçosamente
geridos no melhor interesse da sociedade, o que não acontece na
UFOP, já que a escolha privilegia interesses pessoais e afinidades
dos moradores.
Ora, o melhor interesse
da sociedade é que a distribuição de vagas siga critérios
sócio-econômicos, lembrando que a Universidade persegue objetivos
essencialmente sociais. Num país onde o abismo social é avassalador
e uma vergonha nacional, não fazê-lo constitui um atentado contra
as classes mais pobres da sociedade brasileira. Esta associação nem
representa a categoria estudantes da UFOP. São só meros 10%, se
muito. E os outros 90%? Não existem? Não vi nenhuma menção a esta
“minoria irrelevante”, neste manifesto “democrático”.
E vamos falar sério. O
critério de afinidade é universalmente
conceituado como sendo subjetivo,
pois depende de gostos e escolhas de caráter pessoal, que variam de
acordo com indivíduos, sexo, religião, aparência física, caráter,
inclinação profissional, etc. Aliás, nem deveria ser mais
cogitado, pois a convivência com as diferenças ou ausência das
chamadas afinidades deveria ser encarada dentro de um espírito de
aprendizado, de ampliação de horizontes, na promoção da igualdade
e de experiências transformadora. Exige tolerância, civilidade,
domínio de caráter, capacidade de diálogo e de aceitação. Exige
mente aberta. A sociedade moderna e globalizada nos propõe e nos
condiciona justamente para a vivência cotidiana e enriquecedora no
contato e no embate pelo novo, pelo inovador, pelo diferente, pelo
inusitado, alimentada pelo reconhecimento da singularidade e
diversidade do espírito humano, em todos os seus aspectos. Mundo,
vasto mundo e vocês plantados nos tais quadrados daquela musiquinha
idiotizante, contando o vil metal. O que a gente sonhava que devia
ser ponte, nos duros anos da ditadura, ainda é apenas muro.
Não obstante, voltando
ao centro da questão, Naomar de Almeida (2009) [2] escreveu
recentemente no Estadão que:
O conceito de
autonomia da universidade articula meios e fins. Como sua missão é
socialmente referenciada, penso que a autonomia dos fins deve ser
relativa, com participação e controle social na definição de
metas e finalidades.
Infelizmente, a atual
classe universitária nem sequer percebe o quão pouco a universidade
brasileira é autônoma, principalmente naquilo que deveria ser o seu
mais sacrossanto núcleo. Os tais arranhões que tanto temem já são
verdadeiros rasgões, pois nem mesmo no plano didático-pedagógico,
a Universidade se mostra assim tão autônoma.
A universidade
brasileira perverte o conceito de autonomia. Onde precisa, não
exerce autonomia, pois, em seu cotidiano, a gestão dos meios segue
pautas extrainstitucionais e obedece a marcos heterônomos.(Almeida,
2009)
Almeida argumenta que, no
plano acadêmico, a universidade se engana, ao pretender-se autônoma.
De fato, longe estamos
da mítica autonomia universitária. Submetidos à crescente
judicialização da sociedade, concursos docentes, processos
seletivos, transferências e matrículas obedecem a leis e regras
mais cartoriais que acadêmicas.(Almeida, 2009)
Quantos dos atuais
alunos, e até mesmo os que aí estão, abrigados por este absurdo
“manifesto”, se matricularam graças aos famosos mandados de
segurança, quando excluídos como excedentes ou casos semelhantes?
Vejamos o caso das repúblicas, supondo que a Universidade se valesse
imediatamente da sua autonomia (que aliás é de sua obrigação
legal e moral) para impor os critérios sócio-econômicos, excluindo
os inelegíveis das moradias federais, segundo critérios
sócio-econômicos. A autonomia invocada iria para o brejo na hora.
Imagino a chuva, digo, temporal de ações judiciais se abatendo
sobre o judiciário. E ninguém pensaria em comentários ambíguos e
maldosos quando o MP ou promotor público aparecesse na mídia, a
cada cinco minutos. Que conveniente tem sido invocar a mesma suposta
autonomia, para acobertar a perpetuação de privilégios indevidos e
critérios abusivos!
Ainda no campo da
pretensão de autonomia de caráter didático-pedagógico, Almeida
(2009) salienta que a Universidade se inclina diante de projetos
pedagógicos que seguem, minuciosamente diretrizes curriculares
estabelecidas por órgãos externos de regulação, influenciados por
interesses corporativos e mercadológicos. E vai mais além,
denunciando que linhas de pesquisa contemplam prioridades definidas
por agências de fomento e por aí vai.
Entretanto, docentes e
dirigentes reivindicam autonomia dos fins. Tal posição tem
justificado, por exemplo, rechaçar políticas de ações afirmativas
e inclusão
social,
o que pouco contribui para tornar mais justa a
sociedade que abriga, sustenta e legitima a universidade.
Aí está. Aí está o
velho e fora de moda Wally, neste emaranhado de explicações. Como
continuar a abrigar, sustentar e legitimar um sistema ou modelo mal
gerido, mal explicado, excludente, elitista, oneroso e anacrônico (e
por vezes violento) de repúblicas federais pela UFOP, com suas
garagens carentes, abrigando carros carentes? Nem precisa entrar no
mérito das empresinhas clandestinas. O sistema não atende ao
princípio de impessoalidade e de eficiência da administração
pública. Nem ao de moralidade. É imoral comprometer um patrimônio
caríssimo para atender a uns poucos bem ou mal escolhidos. É lesivo
aos interesses da sociedade e aos parcos recursos da educação. E a
farra com o patrimônio público colocou a nu a total
corruptibilidade do sistema ou modelo, como queiram. O problema não
é mais a defesa da autonomia ou auto-gestão da república, mas da
defesa intransigente da “res
publica”,
ou da coisa pública, conceito que deviam aprender e apreender
urgentemente.
O foco aqui tem pouco a
ver com a autogestão, não tem nada a ver com ouropretanos birrentos
e intransigentes, não tem nada a ver com Carnaval ou barulho. Estes
são problemas paralelos e apresentados como o eixo da discussão,
até de forma que chega a ser leviana e imprudente. O documento faz
referências a supostas condutas repreensíveis da Secretaria de
Cultura ou funcionário ligado a ela, no trecho que diz:
“Desta forma, faltando
apenas duas semanas e meia para o início das festividades de
carnaval, desistimos das negociações, apesar
da grande insistência da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo.
Um
carnaval fraco em
ano eleitoral,
sem turistas nos hotéis, seria ruim mesmo, e por isso muitas
propostas surgiram. Nesta hora, se as Repúblicas continuassem as
negociações e realizassem carnaval, até mesmo as taxas abusivas
cobradas em outros carnavais, como o ISSQN, seriam extintas num passe
de mágica.
A Lei dos Blocos, sancionada sem o conhecimento de muitos, seria
revogada em duas semanas. Não haveria mais multas descabidas por
causa de som.
Em suma, a Secretaria
tentou fazer
o que achou que seria melhor para a cidade e para o setor hoteleiro,
porém já era tarde para convencer as Repúblicas.”
Tenho a nítida impressão
de que o Sr. Secretário, como autoridade máxima daquela
instituição, foi praticamente envolvido em alegações que remetem
a improbidade administrativa, neste manifesto. Há sugestões de
tentativa de suborno e de oferta de vantagens a moradores de
repúblicas federais, com promessas até de revogação de leis para
favorecer supostos interesses da cidade. Se essa alegação for
verdadeira, o caso é da maior gravidade. Se for apenas um discurso
leviano, também isso deve ser esclarecido. Da mesma forma, a
expressão multas
descabidas
pressupõe a prática de outra irregularidade, também uma referência
que precisa ser comprovada e denunciada, já que isso fere a
presunção de probidade de fiscais e agentes públicos municipais.
Finalmente, a arrogância
do último parágrafo deste malfadado manifesto me pareceu uma ameaça
nada velada para a volta do carnaval das repúblicas federais,
acobertada (ADIVINHE), pela ilimitada e soberana autonomia da UFOP.
Não acatar recomendações do MP é uma escolha que eu não faria ou
qualificaria como sábia. O promotor só deve e só pode recomendar o
que a lei exige ou permite, não o que melhor lhe aprouver. A
alternativa sempre conduz à questão das conseqüências. Se me
lembro bem de nossa negligenciada Constituição Brasileira, o artigo
37 diz, textualmente:
“ a administração
pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência...”
Note bem que o status de
autarquia e de instituição pública coloca a UFOP, sob o jugo deste
artigo, assim como os usuários de moradias públicas, qualificados
como seus agentes, em virtude da delegação de poderes pela UFOP, no
notório princípio de auto-gestão dos imóveis, pelos usuários. Os
privilégios sempre trazem certas obrigações e contrapartidas
legais. Se não se salvam nem o conhecido Juiz Lalau nem governador
de Distrito Federal, também eles investidos de sua própria
instância de autonomia. Pressinto que o próximo Carnaval será um
divisor de águas.
Quem diria, a nossa velha
geração doida para reinventar o mundo e uma juventude que pensa
como os bisavós. Mas enfim, ainda sob a bandeira e esperança de
minha longínqua juventude,“ a de que o novo sempre vem”, deixo
aqui as reflexões de Almeida ,sob a atual universidade brasileira,
que bem se aplica ao tema discutido:
Na atual conjuntura
nacional, rica em oportunidades e desafios, pode a defesa da
autonomia justificar conservadorismo
social, imobilismo institucional e ranço acadêmico? Penso que não.
Immanuel Kant,
propondo destradicionalizar a universidade mediante experimentação
de novas formas de pensar e agir, propôs a audácia como consigna da
autonomia universitária. Seguindo o grande filósofo, defendo
o conceito de autonomia somente como ousadia histórica, jamais para
manter a velha universidade elitista, alienada e anacrônica, sempre
para transformar e reinventar a vida.
.
Kátia Maria Nunes
Campos
Bacharel em História
pela UFOP, Mestre em Demografia e Doutoranda pelo Centro Regional de
Desenvolvimento Regional – Cedeplar/ UFMG. Pesquisadora em
Urbanismo, Demografia Histórica e População e Pobreza em Crianças.
Coordenadora de Projetos do Instituto Cultural Diogo de Vasconcelos.
Ouropretana
Referências:
(1)Naomar de Almeida
Filho, doutor em epidemiologia, pesquisador do CNPq, professor
titular do Instituto de Saúde Coletiva e reitor da UFBA
(Universidade Federal da Bahia).
(2)VERGARA, S. C. A
Autonomia da Universidade e a Nova República.
Fórum
Educacional,
v. 12, n. 2, 1988, p. 74.
Um comentário:
Onde posso ler o tal manifesto publicado pela Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto??
Caso o manisfesto n tenha sido publicado on-line, penso que seria interessante publica-lo, dado que para compreender as sobrias criticas da Srta. Katia temos de conhecer o conteudo do texto ao qual ela faz referencia.
Aproveito para parabenizar a Katia pelo excelente texto, de clareza e qualidade admiraveis!!!
Att
Pollyanna
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