quinta-feira, 25 de março de 2010

Polêmica Crítica à Universidade, à Refop e ao sistema de autogestão das Repúblicas Federais de Ouro Preto... Vai dar o que falar...


REPÚBLICAS FEDERAIS: QUOSQUE TANDEM ...?

por KÁTIA CAMPOS
A leitura do manifesto publicado pela Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto deixa um gosto amargo e desalento quanto à qualidade acadêmica dos redatores, pois a impressão que se tem de sua leitura, é que foi redigido por e para adolescentes arrogantes e rebeldes. O manifesto não passa de uma bravata, uma tentativa ingênua de reduzir uma grave questão de interesse e direito público, a uma mera birra entre estudantes e moradores. Ou pior, à realização ou não de Carnaval (que aliás, foi maravilhosamente bem, sem a intervenção destrutiva de cidadãos moradores temporários e alheios à prevalência da cultura local). Em matéria de falta de conhecimento e grande capacidade de torcer a realidade, perplexos ficamos nós.
Vamos analisar, então, os equívocos e inconsistências que permeiam este documento. O primeiro deles diz respeito ao desconhecimento evidente da complexidade do significado de autonomia e, por extensão, do conceito de autonomia universitária. Segundo RANIERI (1994)[1] a autonomia, no direito público, pode ser conceituada como poder funcional derivado, circunscrito ao peculiar interesse da entidade que o detém e limitado pelo ordenamento que lhe deu causa, sem o qual ou fora do qual não existiria. Trocando em miúdos, a autonomia não é soberania absoluta, como querem muitos, mas poder derivado.
Vamos explicar melhor: quando este poder é atribuído a uma instituição pública, isto não lhe garante liberdade absoluta, uma vez que a autonomia é restrita ao interesse específico da entidade. Portanto, a autonomia é sempre relativa. Suas atividades não são executadas em benefício exclusivo do seu interesse, mas principalmente em função dos interesses da sociedade que a institui e financia.
Entendam bem, o interesse e o direito de se manifestar sobre os rumos e a atuação administrativa (ou qualquer outra) é de todos nós, o povo brasileiro, inclusive daqueles que jamais chegarão ou chegaram às portas de uma escola, seja de que nível for. O povo ouropretano está plenamente qualificado para protestar, fiscalizar e denunciar, sempre que a lei o permita. Há conflitos paralelos, não menos relevantes, acontecendo simultaneamente, que o manifesto deliberadamente apresenta como integrantes da questão, quando não são. A polêmica desaparece quando se identifica o foco real de toda esta questão, o desvio ou mau uso das moradias federais e sua intolerável relação custo-benefício. Senão vejamos:
Do ponto de vista ou “análise” do manifesto, a “polêmica” se trata de um mero e rasteiro confronto polarizado entre população e estudantes, colocando a categoria estudantes como vítimas ou bodes expiatórios dos rancores ouropretanos. Não há nenhuma categoria genérica “estudantes da UFOP”, como alvo constante de atitudes hostis de ouropretanos. Existem moradores de patrimônio público federal que abusam ilegalmente de um privilégio para auferir lucro. Existe um sistema anacrônico e obsoleto. Os conflitos porventura existentes com moradores de repúblicas particulares não se enquadram nem seria adequado discuti-los sobre este manifesto em particular.O povo de Ouro Preto existe e há mais de 300 anos.
Como era de se esperar, o artigo 207 volta a ser citado inapropriadamente e de maneira nada sutil, como para nos dizer que talvez estejamos ameaçando “arranhar” a autonomia universitária. A Associação não parece se incomodar em perverter o conceito específico de autonomia universitária, invocado para justificar critérios flagrantemente contrários à promoção de maior igualdade social, favorecendo alunos não carentes com o direito de moradia gratuita. A manutenção estrutural das casas federais não é da atribuição de cidadãos, é obrigação e dever legal da UFOP.
Afinal, em que consiste a famosa autonomia universitária? Em primeiro lugar, é aplicável a relatividade intrínseca do conceito de autonomia explicitado acima, ressaltando que a Universidade não tem um fim em si mesma, mas serve aos interesses da sociedade que a institui e mantém. Os recursos públicos aplicados na moradia estudantil devem ser forçosamente geridos no melhor interesse da sociedade, o que não acontece na UFOP, já que a escolha privilegia interesses pessoais e afinidades dos moradores.
Ora, o melhor interesse da sociedade é que a distribuição de vagas siga critérios sócio-econômicos, lembrando que a Universidade persegue objetivos essencialmente sociais. Num país onde o abismo social é avassalador e uma vergonha nacional, não fazê-lo constitui um atentado contra as classes mais pobres da sociedade brasileira. Esta associação nem representa a categoria estudantes da UFOP. São só meros 10%, se muito. E os outros 90%? Não existem? Não vi nenhuma menção a esta “minoria irrelevante”, neste manifesto “democrático”.
E vamos falar sério. O critério de afinidade é universalmente conceituado como sendo subjetivo, pois depende de gostos e escolhas de caráter pessoal, que variam de acordo com indivíduos, sexo, religião, aparência física, caráter, inclinação profissional, etc. Aliás, nem deveria ser mais cogitado, pois a convivência com as diferenças ou ausência das chamadas afinidades deveria ser encarada dentro de um espírito de aprendizado, de ampliação de horizontes, na promoção da igualdade e de experiências transformadora. Exige tolerância, civilidade, domínio de caráter, capacidade de diálogo e de aceitação. Exige mente aberta. A sociedade moderna e globalizada nos propõe e nos condiciona justamente para a vivência cotidiana e enriquecedora no contato e no embate pelo novo, pelo inovador, pelo diferente, pelo inusitado, alimentada pelo reconhecimento da singularidade e diversidade do espírito humano, em todos os seus aspectos. Mundo, vasto mundo e vocês plantados nos tais quadrados daquela musiquinha idiotizante, contando o vil metal. O que a gente sonhava que devia ser ponte, nos duros anos da ditadura, ainda é apenas muro.
Não obstante, voltando ao centro da questão, Naomar de Almeida (2009) [2] escreveu recentemente no Estadão que:
O conceito de autonomia da universidade articula meios e fins. Como sua missão é socialmente referenciada, penso que a autonomia dos fins deve ser relativa, com participação e controle social na definição de metas e finalidades.
Infelizmente, a atual classe universitária nem sequer percebe o quão pouco a universidade brasileira é autônoma, principalmente naquilo que deveria ser o seu mais sacrossanto núcleo. Os tais arranhões que tanto temem já são verdadeiros rasgões, pois nem mesmo no plano didático-pedagógico, a Universidade se mostra assim tão autônoma.
A universidade brasileira perverte o conceito de autonomia. Onde precisa, não exerce autonomia, pois, em seu cotidiano, a gestão dos meios segue pautas extrainstitucionais e obedece a marcos heterônomos.(Almeida, 2009)
Almeida argumenta que, no plano acadêmico, a universidade se engana, ao pretender-se autônoma.
De fato, longe estamos da mítica autonomia universitária. Submetidos à crescente judicialização da sociedade, concursos docentes, processos seletivos, transferências e matrículas obedecem a leis e regras mais cartoriais que acadêmicas.(Almeida, 2009)
Quantos dos atuais alunos, e até mesmo os que aí estão, abrigados por este absurdo “manifesto”, se matricularam graças aos famosos mandados de segurança, quando excluídos como excedentes ou casos semelhantes? Vejamos o caso das repúblicas, supondo que a Universidade se valesse imediatamente da sua autonomia (que aliás é de sua obrigação legal e moral) para impor os critérios sócio-econômicos, excluindo os inelegíveis das moradias federais, segundo critérios sócio-econômicos. A autonomia invocada iria para o brejo na hora. Imagino a chuva, digo, temporal de ações judiciais se abatendo sobre o judiciário. E ninguém pensaria em comentários ambíguos e maldosos quando o MP ou promotor público aparecesse na mídia, a cada cinco minutos. Que conveniente tem sido invocar a mesma suposta autonomia, para acobertar a perpetuação de privilégios indevidos e critérios abusivos!
Ainda no campo da pretensão de autonomia de caráter didático-pedagógico, Almeida (2009) salienta que a Universidade se inclina diante de projetos pedagógicos que seguem, minuciosamente diretrizes curriculares estabelecidas por órgãos externos de regulação, influenciados por interesses corporativos e mercadológicos. E vai mais além, denunciando que linhas de pesquisa contemplam prioridades definidas por agências de fomento e por aí vai.
Entretanto, docentes e dirigentes reivindicam autonomia dos fins. Tal posição tem justificado, por exemplo, rechaçar políticas de ações afirmativas e inclusão social, o que pouco contribui para tornar mais justa a sociedade que abriga, sustenta e legitima a universidade.
Aí está. Aí está o velho e fora de moda Wally, neste emaranhado de explicações. Como continuar a abrigar, sustentar e legitimar um sistema ou modelo mal gerido, mal explicado, excludente, elitista, oneroso e anacrônico (e por vezes violento) de repúblicas federais pela UFOP, com suas garagens carentes, abrigando carros carentes? Nem precisa entrar no mérito das empresinhas clandestinas. O sistema não atende ao princípio de impessoalidade e de eficiência da administração pública. Nem ao de moralidade. É imoral comprometer um patrimônio caríssimo para atender a uns poucos bem ou mal escolhidos. É lesivo aos interesses da sociedade e aos parcos recursos da educação. E a farra com o patrimônio público colocou a nu a total corruptibilidade do sistema ou modelo, como queiram. O problema não é mais a defesa da autonomia ou auto-gestão da república, mas da defesa intransigente da “res publica”, ou da coisa pública, conceito que deviam aprender e apreender urgentemente.
O foco aqui tem pouco a ver com a autogestão, não tem nada a ver com ouropretanos birrentos e intransigentes, não tem nada a ver com Carnaval ou barulho. Estes são problemas paralelos e apresentados como o eixo da discussão, até de forma que chega a ser leviana e imprudente. O documento faz referências a supostas condutas repreensíveis da Secretaria de Cultura ou funcionário ligado a ela, no trecho que diz:
Desta forma, faltando apenas duas semanas e meia para o início das festividades de carnaval, desistimos das negociações, apesar da grande insistência da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Um carnaval fraco em ano eleitoral, sem turistas nos hotéis, seria ruim mesmo, e por isso muitas propostas surgiram. Nesta hora, se as Repúblicas continuassem as negociações e realizassem carnaval, até mesmo as taxas abusivas cobradas em outros carnavais, como o ISSQN, seriam extintas num passe de mágica. A Lei dos Blocos, sancionada sem o conhecimento de muitos, seria revogada em duas semanas. Não haveria mais multas descabidas por causa de som. Em suma, a Secretaria tentou fazer o que achou que seria melhor para a cidade e para o setor hoteleiro, porém já era tarde para convencer as Repúblicas.”
Tenho a nítida impressão de que o Sr. Secretário, como autoridade máxima daquela instituição, foi praticamente envolvido em alegações que remetem a improbidade administrativa, neste manifesto. Há sugestões de tentativa de suborno e de oferta de vantagens a moradores de repúblicas federais, com promessas até de revogação de leis para favorecer supostos interesses da cidade. Se essa alegação for verdadeira, o caso é da maior gravidade. Se for apenas um discurso leviano, também isso deve ser esclarecido. Da mesma forma, a expressão multas descabidas pressupõe a prática de outra irregularidade, também uma referência que precisa ser comprovada e denunciada, já que isso fere a presunção de probidade de fiscais e agentes públicos municipais.
Finalmente, a arrogância do último parágrafo deste malfadado manifesto me pareceu uma ameaça nada velada para a volta do carnaval das repúblicas federais, acobertada (ADIVINHE), pela ilimitada e soberana autonomia da UFOP. Não acatar recomendações do MP é uma escolha que eu não faria ou qualificaria como sábia. O promotor só deve e só pode recomendar o que a lei exige ou permite, não o que melhor lhe aprouver. A alternativa sempre conduz à questão das conseqüências. Se me lembro bem de nossa negligenciada Constituição Brasileira, o artigo 37 diz, textualmente:
a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”
Note bem que o status de autarquia e de instituição pública coloca a UFOP, sob o jugo deste artigo, assim como os usuários de moradias públicas, qualificados como seus agentes, em virtude da delegação de poderes pela UFOP, no notório princípio de auto-gestão dos imóveis, pelos usuários. Os privilégios sempre trazem certas obrigações e contrapartidas legais. Se não se salvam nem o conhecido Juiz Lalau nem governador de Distrito Federal, também eles investidos de sua própria instância de autonomia. Pressinto que o próximo Carnaval será um divisor de águas.
Quem diria, a nossa velha geração doida para reinventar o mundo e uma juventude que pensa como os bisavós. Mas enfim, ainda sob a bandeira e esperança de minha longínqua juventude,“ a de que o novo sempre vem”, deixo aqui as reflexões de Almeida ,sob a atual universidade brasileira, que bem se aplica ao tema discutido:
Na atual conjuntura nacional, rica em oportunidades e desafios, pode a defesa da autonomia justificar conservadorismo social, imobilismo institucional e ranço acadêmico? Penso que não.
Immanuel Kant, propondo destradicionalizar a universidade mediante experimentação de novas formas de pensar e agir, propôs a audácia como consigna da autonomia universitária. Seguindo o grande filósofo, defendo o conceito de autonomia somente como ousadia histórica, jamais para manter a velha universidade elitista, alienada e anacrônica, sempre para transformar e reinventar a vida.
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Kátia Maria Nunes Campos
Bacharel em História pela UFOP, Mestre em Demografia e Doutoranda pelo Centro Regional de Desenvolvimento Regional – Cedeplar/ UFMG. Pesquisadora em Urbanismo, Demografia Histórica e População e Pobreza em Crianças. Coordenadora de Projetos do Instituto Cultural Diogo de Vasconcelos. Ouropretana

Referências:
(1)Naomar de Almeida Filho, doutor em epidemiologia, pesquisador do CNPq, professor titular do Instituto de Saúde Coletiva e reitor da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
(2)VERGARA, S. C. A Autonomia da Universidade e a Nova República. Fórum
Educacional, v. 12, n. 2, 1988, p. 74.

Um comentário:

srta assis disse...

Onde posso ler o tal manifesto publicado pela Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto??
Caso o manisfesto n tenha sido publicado on-line, penso que seria interessante publica-lo, dado que para compreender as sobrias criticas da Srta. Katia temos de conhecer o conteudo do texto ao qual ela faz referencia.

Aproveito para parabenizar a Katia pelo excelente texto, de clareza e qualidade admiraveis!!!

Att

Pollyanna